Ninguém me ensinou a fazer torço… Parece que a gente simplesmente sabe fazer. E torço, lá na casa de mainha, não era roupa de sair, era uma coisa que se coloca no cabelo quando não se tinha tempo para cuidar dele.
Na minha adolescência comecei a ter sonhos em que via mulheres tribais, com longas tranças e colares de osso. Acordava no meio da noite para desenhá-las. Desenhei a não mais poder. Em papel, em azulejo… onde dava. Foi nessa época que comecei a ver beleza naqueles panos enrolados na cabeça. Quando caminhava pela Avenida Sete, e via meu reflexo na vitrine, tinha sempre uma sensação muito desconfortável, um estranhamento… Que se esvaia quando eu estava protegida pelo meu torço. Mesmo que o torço fosse então coisa estranha, usada só dentro de casa, ou por pessoas do movimento negro.
As visões noturnas vieram me salvar. Não demorou muito até que eu comecei a colocar meu rosto, mentalmente, naqueles desenhos. Até que tomei coragem para parar de alisar o cabelo, até que ousei fazer as tranças.
Fiquei 8 horas dentro de um barraco a menos de 1km da minha casa, sentada entre as pernas de uma mulher estranha, sentindo uns cheiros que nunca senti antes e que até hoje me dão uma sensação de conforto e de raiz, ouvindo reggae. Hoje reconheço que durante aquelas 8 horas, enquanto mãos ágeis trançavam meu cabelo, minha história, minhas lembranças, minha própria alma estava também sendo tramada, re-inserida na trama de um tecido milenar da minha cultura, da minha raiz. Foi ali, naquele barraco que re-encontrei minha alma ancestral.
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Hoje, um dia banal, um dia como outro qualquer, eu que insisto em contar e recontar histórias que conectam minhas filhas a esta mesma trama de cultura e etnia, a despeito da pele mais clara, pela primeira vez coloquei seus turbantes… e me emocionei entendendo que mais uma ponte vai se construindo, desta vez “hacia el futuro”.
Eu sou. Porque somos.